terça-feira, 18 de novembro de 2014

“Há uma espécie de argentinização das contas públicas”, diz o ministro do TCU José Jorge


Para o ministro José Jorge, que se aposenta agora, os 16 anos de governo PT oferecem o risco de um "golpe democrático" (Foto: Antônio Cruz/ABr)
Para o ministro José Jorge, que se aposenta agora, os 16 anos de governo PT oferecem o risco de um “golpe democrático” (Foto: Antônio Cruz/ABr)
Prestes a se aposentar, o ministro do Tribunal de Contas da União José Jorge diz que finanças do governo perderam a credibilidade e afirma que situação energética já é pior do que a da fase pré-racionamento

Por Gabriel Castro, de Brasília, para VEJA.com

José Jorge de Vasconcelos Lima está de malas prontas para retornar ao Recife após 32 anos em Brasília. Ele já foi deputado, senador, ministro de Minas e Energia e presidente da Companhia Energética de Brasília (CEB) antes de ser indicado pelo Congresso Nacional para uma vaga no Tribunal de Contas da União (TCU), em 2008. Como vai completar 70 anos na terça-feira, será aposentado compulsoriamente do posto.
Em entrevista ao site de VEJA, o ministro diz que o tribunal já não confia nos números apresentados pelo governo, diz que a manobra fiscal para abandonar o superávit primário foi feita para “enganar” e afirma que a situação do sistema energético é pior do que aquela que motivou o racionamento, em 2001. “São Pedro não resolve, tem que ser Deus”, diz ele.
Qual é a situação atual do setor elétrico? A situação é péssima. Todos os problemas começaram com a edição da medida provisória 579. Essa MP foi uma tentativa que o governo fez de diminuir a tarifa de todo o setor elétrico em 20% quando, na realidade, não havia as condições econômicas e nem disponibilidade de energia suficiente para que isso fosse feito. Porque, como qualquer produto, no momento em que você diminui o preço da energia você incentiva o consumo. Se você diminui o preço da banana, provavelmente alguém que não comia banana vai passar a comer.
Essa medida foi feita com objetivos políticos, como uma medida popular. A própria presidente foi para a televisão anunciar. Eles iriam fazer isso se utilizando da seguinte questão: algumas das principais hidrelétricas teriam o seu prazo de concessão vencidos agora, entre 2013 e 2016. E o governo queria antecipar esse fim da concessão indenizando as empresas e fazendo com que aquela energia que já estava com o custo do investimento pago fosse distribuída para as distribuidoras pagando apenas os custos operacionais, não mais os investimentos, que já estavam amortizados.
A outra ideia seria licitar novamente, pegar o dinheiro e investir em energia. A ideia em si de distribuir essa energia quase gratuitamente não é ruim. A forma que foi feita e o momento em que foi feito é que foram inadequados. Por exemplo: naquele momento havia um risco hidrológico. Terminou que deu tudo errado.
Quando a medida provisória foi elaborada, em 2012, já havia indícios claros de que a situação poderia se tornar crítica? Exatamente. Além disso, nem todas as geradoras aceitaram o acordo. Só as federais. Com isso, a oferta que iria ser apresentada pela distribuidora não foi completa e as distribuidoras ficaram descomportadas. E isso é deixar de lado um dos pilares do modelo energético: as distribuidoras têm que ficar 100% contratadas.
Com isso, elas são obrigadas a comprar energia no mercado spot. A distribuidora paga a energia vamos supor a cento e poucos reais por megawatt, passou a pagar 700, 800, e a cobrar cento e poucos, porque isso só vai ser corrigido na próximo reajuste. As distribuidoras entraram em colapso. Tem empresa que está com 20% do valor de mercado. Todas as transmissoras hoje têm 30% da receita que tinham em 2012. E a despesa é a mesma. Tem os mesmos custos. Então a situação é muito difícil. Por isso que São Pedro não resolve, tem que ser Deus.
Nesse processo iniciado em 2012, pode-se dizer que a tendência é piorar ou o pior já passou? Não, a pior fase não passou ainda. Eu até disse no meu discurso de despedida que nós estamos nas mãos de São Pedro, mas não estamos: nós estamos na mão de Deus. Não é só de chuva que precisa – embora precise de chuva também, porque os reservatórios do Nordeste estão em 14% e os do Sudeste em 17%. Isso é menos que na época do racionamento de 2001.
Saiu uma reportagem mostrando que, do ponto de vista dos custos, o prejuízo já foi o dobro da época do racionamento. Porque na época do racionamento nós enfrentamos. Eu fui ministro na época. Quando levei ao presidente a situação para que nós tomássemos as providências, eu só tinha doze dias de ministro. E essa equipe que está cuidando disso  tem doze anos.
Quando os cabeças do sistema elétrico na época tiveram a primeira reunião comigo e me mostraram as estatísticas eu disse: “A gente tem que tomar providência ontem”. Aí fui ao presidente e ele disse: “Não é possível, isso vai dar a maior crise política”. Aí eu mostrei os números e ele me autorizou, fui para a televisão, fizemos o racionamento e foi um case vitorioso. Porque terminou que se escapou sem maiores prejuízos. A imprensa colaborou, a população colaborou. Todo mundo trocou lâmpada, desligou frezeer, economizou e quando o país saiu do racionamento, saiu com sobra de energia.
O governo sempre demonizou o período de racionamento, inclusive para fins eleitorais. O senhor acha que isso explica a resistência da presidente Dilma em tomar medidas para economizar energia? Já devia ter feito. Acho que não fizeram pelo motivo que você mencionou. Mas eles estão aumentando o risco para eles mesmos, porque pode chegar um momento em que eles vão ser obrigados a fazer em uma situação muito pior do que poderiam ter feito antes.
Não tem mais térmica para ligar. A água está acabando, todo dia aparece na televisão. E na hora em que você for fazer um racionamento ou uma racionalização que seja vai ser num momento de colapso. Vai ser muito mais difícil. Sem falar no colapso financeiro, que não chegou a haver na época de racionamento e está havendo agora.
O cálculo que o TCU fez é que é em 2013 e 2014 os consumidores economizaram cerca de 32 bilhões por ano com a redução no preço da energia por conta daquela medida provisória 579. Mas, em compensação, gerou-se um custo para os próprios consumidores de 61 bilhões, o que significa que é uma espécie de presente de grito. Vamos ganhar 32 bilhões de desconto e vamos pagar 61 bilhões pela forma errada como a coisa foi feita. Isso vai ser pago pelo contribuinte e pelo consumidor. Só que no setor elétrico são as mesmas pessoas: ele paga imposto e paga a conta de energia.
É uma situação muito grave, tem que ser enfrentada. Infelizmente, por enquanto, não está sendo enfrentada. A crise vem sendo negada. E as empresas não podem falar muito porque de certa maneira estão nas mãos do governo. Quanto mais frágil a empresa mais na mão do governo ela fica.
A presidente Dilma foi ministra de Minas e Energia e tem fama de que conhece o setor. O senhor acha que ela ignora esses riscos? Acho que ela não ignora, porque a carreira dela começou como secretária de Energia do Rio Grande do Sul. Depois ela foi ministra de Minas e Energia, chefe da Casa Civil. E é a comandante-em-chefe do setor até hoje.
Ela sabe perfeitamente; apenas acredita que pode sair dessa situação sem que se tenha nem mesmo uma racionalização. Eles não quiseram fazer nenhum pedido de economia de energia como fez em São Paulo com a água. Estão sempre dizendo que tem. Só que a água vai faltando aos pouquinhos. E a energia é diferente. Quando falta, falta de uma vez. É um sistema integrado.
O que é preciso fazer para reduzir o risco de desabastecimento? Primeiro precisava economizar o consumo. Teria que fazer isso, porque você não pode esperar os reservatórios baixarem para menos de 14%. É muito risco. Segundo, tem que chover muito. Terceiro, o governo tem que botar a mão no bolso. Mas tem um inconveniente: o governo já não tem dinheiro. Desistiu do superávit primário.
Há uma espécie de argentinização das contas públicas. Hoje em dia os agentes públicos e privados já não acreditam mais nas contas que o governo apresenta. Cada um acredita nas próprias contas. Não dá pra confiar mais, como aconteceu na Argentina com a inflação. E isso já há um tempo. Em 2012 eu fui relator das contas do governo e afirmei isso.
Então o governo vai ter que pagar uma parte desse prejuízo como vem pagando através dessa ACDE. Vai ter que botar esse dinheiro, que se estima em 61 bilhões. E uma parte dessa vai ser paga pelo consumidor. Houve um empréstimo de 17, pouco bilhões e os consumidores vão pagar 26. O resto é de juros. Vai ser criado um encargo e especial que você vai pagar na sua conta de luz. Fora isso tem os aumentos das contas.
Teve um em Roraima que aumentou 54% e só no Rio de Janeiro o aumento foi de 20 e poucos por cento. Então se perdeu o controle porque nesse aumento agora já estão incluídos os custos das térmicas. Estou achando que a partir do ano que vem os aumentos tendem a ser maiores ainda.
O caso da “argentinização” nocivo à credibilidade do governo? Estão usando um instituto público para você dar um dado errado à população. Isso fere a credibilidade. Aqui, por exemplo, você diz o superávit primário vai ser 2% do PIB, mas não vai incluir o que eu gasta com isso ou com aquilo. No fim dá um superávit, mas aquilo não é um superávit real. Porque aquele dinheiro não existe. É uma situação feita para enganar. Só que não engana: quando isso chega ao extremo, como está chegando agora, as pessoas esquecem essa conta e cada um faz a sua.

Nenhum comentário:

Postar um comentário