FERNANDO GABEIRA
O relatório sobre a queda do viaduto em Belo Horizonte apontou a causa: a viga de sustentação tinha só 1/10 do aço necessário para conter o peso da estrutura. Stalin chamava-se o homem de aço. Romances populares editados pelos partidos comunistas da época celebravam os bolcheviques de aço, entre eles um aviador que perdeu as pernas e continuou combatendo. No universo ocidental, mais crítico, o aço é integrado ao corpo humano na figura de um herói infantil, o Super-homem. Não tenho nada contra a fusão do corpo com o metal. O titânio tem ajudado muita gente a se mover normalmente: é uma boa presença. Felizmente, não trabalhamos com essa mitologia de corpos de aço. Mas pelo menos o aço de nossas construções deveria ser o suficiente para mantê-las de pé.
Para onde foram os 90% do aço? É uma pergunta pertinente, pois só assim entenderíamos melhor o desabamento, para além do laudo técnico. Ausência do aço necessário, camuflada em misturas de areia e cimento, é um elemento simbólico no País. Foi essa mistura malemolente que derrubou os prédios do Sérgio Naya. No Rio, um deputado confessa em gravação que recebe R$ 15 mil/mês, entre outros ganhos, só com o lanche que é servido por ONGs conveniadas com a prefeitura. Se os lanches pudessem ser decompostos como elementos de uma viga, diríamos que milhares de pães, rios de café com leite, igarapés de laranjada desembocaram na barriga do deputado.
Uma notícia diz que Lula se surpreendeu com o desgaste do governo, esperando algo assim só para 2018. Os governos desgastam-se, naturalmente, numa democracia. Nela precisam gerir recursos limitados para atender a gigantescas necessidades. E vencem as eleições prometendo mais do que podem. Esse é um dos dínamos da alternância. Mas cada governo se desgasta de maneira singular. A tolerância e a cumplicidade com a corrupção são fatores, entre outros, que determinaram o desgaste do PT. Alguns afirmam que corrupção sempre existiu, mas agora aumentou a transparência. Parcialmente correto. No entanto, muitos casos só emergiram, como o mensalão e esse escândalo carioca, de uma forma clássica: a disputa pelo butim.
O desgaste do PT começou como uma pedra na água. O primeiro círculo de descontentes nasceu com os navegantes próximos que abandonaram o barco. Impulsionados pelos ventos econômicos, novos amplos círculos desenham-se na água. O processo não se resume à política interna e à economia. O PT quer realizar uma política externa dele, e não do País. Isso é possível em Cuba ou na China. Não para um partido que chega ao poder pelo voto, num contexto democrático. Os dirigentes chineses e cubanos fundem o país com o partido porque liquidaram a oposição organizada.
Esse tema não tem grande impacto eleitoral, mas sempre me preocupou. A nota que o governo brasileiro publicou sobre a guerra na Faixa de Gaza exprime a posição do partido e de milhões de pessoas diante da morte de civis e crianças. No entanto, uma nota nacional sempre é mais equilibrada, mencionando também a violência do Hamas.
O porta-voz israelense chamou o Brasil de anão diplomático. Um líder trabalhista chamou o Brasil de gigante do futebol. Não somos nem uma coisa nem outra. É um equívoco chamar o Brasil de anão diplomático, pois retira a importância do fato histórico da criação de Israel. Neste caso da guerra em Gaza, a violência da resposta de Israel acabou atenuando a posição do governo brasileiro. Mas, sem dúvida, houve uma inflexão: ingenuamente, Lula achou que poderia influenciar um processo de paz. Chegou a viajar para isso.
Ao lançar a nota, o governo praticamente abre mão de dialogar com um dos atores. O Brasil não tem o poder de resolver uma crise que desafia a humanidade, como a do Oriente Médio. Mas tem sido eficaz na pacificação de conflitos nos países de sua região. Está na busca efetiva da paz o grande fundamento de nossa política externa. Mas o PT move-se em zigue-zagues.
A política externa tem pouco impacto eleitoral, mas soma-se aos equívocos que, no conjunto, jogam o PT numa aventura romanesca: navegar sem novas ideias num oceano de desejos de mudança. São Paulo é uma referência: o governo perde para qualquer um dos opositores, sinal de que, para a maioria dos entrevistados, o PT já era. Em termos eleitorais, isso é equacionado em números: perdemos aqui, ganhamos em outros Estados, não ameaça a vitória nacional. Mas perder na região mais desenvolvida do País dá o que pensar, sobretudo para quem se diz na vanguarda do progresso, combatendo elites brancas e outros moinhos de vento.
A Bolsa Família é uma zona de conforto porque envolve milhões de pessoas e foi reconhecida internacionalmente. Supor que represente um escudo contra todos os erros e tropeços é um equívoco. Alguns críticos do programa dizem que com a bolsa as pessoas não querem trabalhar. Discordo, minha tese é que, com a bolsa, o governo não quis mais trabalhar, no sentido de interpretar o Brasil, buscar alternativas, ligar-se aos setores mais dinâmicos e desenvolvidos tanto dentro como fora do País. A Bolsa Família deu para o gasto. E agora que o preço político dos erros vai ficando mais alto?
Por mais que os pragmáticos riam, o viaduto que caiu, além de matar duas pessoas, indicou, para mim, o ponto central do momento: nosso sistema político, já frágil, foi perdendo o aço com a mistura de areia e cimento que a longa dominação do PT injetou. O perito de Minas ficou surpreso porque a viga não se partiu antes. Se traduzimos o aço por credibilidade, também ficamos surpresos como o edifício político se mantém no Brasil. É um problema que transcende as eleições deste ano. Mas elas são a única oportunidade para todos poderem olhar para o abismo que se abriu entre o universo político e o Brasil real.
O ano que nos espera, sobretudo no setor da energia, não é dos mais animadores. O pequeno apagão que vivi na manhã de domingo me lembrou da aspereza do caminho. Tocar o País em tempos de crescimento internacional e distribuição de renda é mais fácil. Quem vencer as eleições encontrará uma pedreira.
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