SACHA CALMON
A democracia direta, sem a interposição dos partidos políticos, voltou à cena no Brasil com o suspeito Decreto nº 8.243 (maio de 2014), da presidente Dilma, cujo conteúdo iremos comentar. É preciso dizer que a democracia vigente no mundo atual é a representativa, quanto mais não fosse pelas imensas populações em alguns países. Significa que ela é exercida pelos representantes que livremente escolhemos. Por falar nisso, é preciso apurar as denúncias de manipulação de nossas urnas eletrônicas.
Todos os países, de um modo ou de outro, contemplam formas de democracia direta, tipo referendo, plebiscito, recall (método de cassar mandato eleitoral nos EUA), leis de iniciativa popular, consultas à sociedade durante o processo legislativo e votação em campo aberto, ainda em uso em cantões pequenos da Suíça (o último deu às mulheres do Cantão o direito de votar em pleno século 20). Os gregos, na cidade de Atenas e em outras, no plano legislativo, a praticavam em praças públicas, a ágora. Como sistema é tribal, as tribos e clãs tinham conselhos. Quando surgiram as pólis (cidades), os conselhos ocorriam nas praças. De polis nasceu a palavra política.
A Constituição brasileira de 1988 prevê inúmeras formas de democracia direta: consultas, referendos, audiências, plebiscitos, acordos coletivos de trabalho etc. Ressalte-se a Lei da Ficha Limpa (iniciativa popular de leis) e a ação popular sem custas nem honorários, contra atos atentatórios ao Tesouro e a bens públicos (largamente utilizada, mas sem muitas manchetes, infelizmente).
O PT, à moda de Vargas, quer tutelar os movimentos sociais, tanto que defere ao secretário-geral da Presidência da República o poder supremo de coordená-los. Deseja fazê-lo por duas razões. Primeira, porque perdeu o controle dos mesmos (em parte). Segundo, porque quer definir seus dirigentes e recursos, para usá-los em seu favor. Essa e não outra é a razão do malsinado decreto, com precedentes conhecidos na Venezuela e na Argentina.
Em editorial, o Correio Braziliense denunciou o perigo do referido decreto presidencial ao bom convívio democrático. E fê-lo bem. O secretário-geral da Presidência, Gilberto Carvalho, argumenta que “os conselhos no Brasil existem desde 1937, as conferências, desde 1941″ (Valor, 4 de junho).
O enredo é outro. O governo foi pego absolutamente de surpresa pelos movimentos de junho de 2013, quando milhões de pessoas saíram às ruas. Talvez os manifestantes fossem de outros movimentos sociais que não os do governo petista. Carvalho disse ainda que o texto do decreto foi construído em parceria com movimentos sociais e com a sociedade civil. O cidadão que não participou tomou conhecimento dele pelos jornais. Mas quem define os movimentos sociais que participarão?
Entre as instâncias criadas, estão: conselho e comissão de políticas públicas, conferência nacional, ouvidoria pública, mesa de diálogo, fórum interconselhos, audiência e consultas públicas e ambiente virtual de participação social. Para coordenar essas instâncias e encaminhar suas propostas, cria-se a Mesa de Monitoramento das Demandas Sociais. O importante no decreto é a “mesa de diálogo”, que tem o intuito de “prevenir, mediar e solucionar conflitos sociais”, com a participação dos setores da sociedade envolvidos. Ele atende necessidade premente do governo após junho de 2013: a “ampliação dos mecanismos de controle social”.
Os órgãos e entidades da administração pública federal direta e indireta deverão, respeitadas as especificidades de cada caso, considerar as instâncias e os mecanismos de participação social, previstos no decreto, para a formulação, a execução, o monitoramento e a avaliação de seus programas e políticas públicas. O decreto cria o conselho de políticas públicas, como “instância colegiada permanente” para participar “no processo decisório e na gestão de políticas públicas”. Um cipoal burocrático maluco.
O PT perdeu o monopólio dos movimentos sociais e o governo ficou sem o termômetro da insatisfação social. Para evitar novas ondas de descontentamento, é preciso identificar os protagonistas e dialogar com eles, isto é, detectar e canalizar as demandas sociais. É ampliando o controle social que se evitam surpresas, quando as instâncias de intermediação de conflitos entraram em curto circuito (é o que se depreende). A coordenação compete ao secretário-geral da Presidência da República.
É mentira! Quem está desconectado é o governo e sua base parlamentar. Estou em campo para criar a Associação Nacional dos Contribuintes e o Fórum Nacional de Desmistificação das Políticas Públicas. Eles agora vão ter que nos ouvir. Caso contrário, joguem esse decreto no lixo. Chega de coronelismo de Estado, suas bolsas, seus gastos, suas investidas sobre o patrimônio público, seu estranho apego ao poder. O medo deles me assusta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário