quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O físico José Goldemberg e a ameaça de apagão: “Crônica de uma morte anunciada”



Setor elétrico teve morte anunciada: "Os ministros de Energia de Fernando Henrique Cardoso poderiam alegar ignorância, mas não os de Lula e Dilma Rousseff" (Foto: Reinaldo Canato)
Setor elétrico teve morte anunciada: “Os ministros de Minas e Energia de Fernando Henrique Cardoso poderiam alegar ignorância – mas não os de Lula e Dilma Rousseff” (Foto: Reinaldo Canato)
Artigo publicado no jornal O Estado de S.Paulo
CRÔNICA DE UMA MORTE ANUNCIADA
Por José Goldemberg, físico, ex-reitor da USP e ex-ministro da Educação e da Ciência e Tecnologia
O que está acontecendo com o sistema que produz eletricidade no Brasil lembra bem o maravilhoso romance de Gabriel García Márquez que conta a história de um assassinato premeditado. Acusado por Angela Vicario de tê-la desonrado, o jovem Santiago Nasar é morto a facadas pelos irmãos dela. Toda a localidade fica sabendo com antecedência da vingança premeditada, mas nada salva Santiago do seu trágico destino, anunciado logo na primeira linha do romance.
Mais de 80% da energia elétrica gerada no Brasil se origina em usinas hidrelétricas, nas quais a força das águas movimenta as máquinas que produzem a eletricidade. Elas dependem, portanto, de chuvas regulares e de reservatórios que acumulem a água para ser usada nos meses (ou anos) em que chove menos.
Reservatórios, às vezes, inundam terras férteis ou áreas cobertas com florestas. É preciso que as empresas que constroem as hidrelétricas reassentem a população afetada – alguns milhares de pessoas em geral – e reduzam ao mínimo os impactos ambientais decorrentes da formação dos reservatórios. Há muitos casos em que isso foi feito com sucesso, como em Itaipu. Em outros, como Balbina, os cuidados devidos não foram tomados em tempo.
Sucede que desde 1985, nas usinas hidrelétricas construídas no País, os reservatórios de água foram negligenciados, tornando-se cada vez menores. A razão para tal foi a falta de visão e coragem de sucessivos governos para enfrentar os problemas tanto sociais como ambientais, que não eram considerados prioritários.
Os inconvenientes decorrentes da formação de reservatórios são, de modo geral, compensados pelas vantagens de dispor de eletricidade a milhares de quilômetros de distância do local onde as usinas hidrelétricas estão localizadas, atendendo às necessidades de milhões de habitantes nas grandes cidades.
Há aqui a necessidade de comparar custos e benefícios e como tratar os problemas dos que são prejudicados com as vantagens dos que são beneficiados. Essa é a função do poder público.
A gravidade do problema de negligenciar a formação de reservatórios ficou evidente em 2001, quando chuvas mais fracas quase levaram ao racionamento de energia elétrica, fato amplamente explorado nas eleições de 2002, que levaram o então candidato a presidente Lula e o PT ao poder.
Daí a analogia com o romance de Gabriel García Márquez: o mesmo problema poderia voltar a ocorrer – como se fosse uma morte anunciada – se não fossem tomadas medidas adequadas. Os ministros de Energia de Fernando Henrique Cardoso poderiam alegar ignorância, mas não os de Lula e Dilma Rousseff.
No governo Lula o problema dos reservatórios não foi enfrentado – como, de modo geral, todos os problemas de infraestrutura do País – e a solução adotada a partir de 2001 foi gerar eletricidade com gás natural para complementar a geração das usinas hidrelétricas em períodos secos.
Essa é uma solução transitória e muito cara, como sabem muito bem os técnicos do setor, por causa do elevadíssimo custo do gás natural no Brasil, razão pela qual usinas a gás podem ser usadas emergencialmente, mas não o tempo todo.
Para piorar a situação, o atual governo tomou em 2012 uma medida claramente demagógica, por meio da Medida Provisória (MP) 579: a de reduzir o custo da contra de luz em 20%. Essa medida foi apresentada como uma espécie de “bolsa eletricidade” para ajudar os mais pobres, mas beneficiou também amplamente os grandes consumidores de energia elétrica no setor eletrointensivo da indústria.

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