Miriam Leitão
Partidos começam com sonhos e projetos. No Brasil, com firma reconhecida em cartório. Partidos são grupos de cidadãos que tentam, nas eleições, conquistar votos pelas ideias. No Brasil, alguns são cascas sem conteúdo que vendem tempo de TV e ganham dinheiro público. O grave nos eventos recentes foi a revelação de que o passado está vivo, e o morto tem firma reconhecida.
O dilema de Marina Silva se resolve pela decisão dela e de seu grupo. O dilema do Brasil é mais profundo. O defeito da democracia brasileira aos 25 anos da nova Constituição ficou mais visível e desconcertante nos últimos dias. A coincidência de três casos tornou o momento surreal. A Justiça deu certidão de nascimento a um partido de nome PROS e tudo o que ele consegue dizer de si mesmo, e suas ideias, é que se o nome é “PROS” não pode ser do contra. Óbvio. Isso seria perfeito para o saudoso Febeapá, Festival de Besteiras que Assola o País. Para os jovens, uma explicação: o Febeapá foi uma genial invenção do jornalista Sérgio Porto, conhecido como Stanislaw Ponte Preta, para que a gente pudesse rir do bizarro da política, numa época em que o normal era ser triste.
A mesma Justiça Eleitoral reconhece um partido montado a partir de central sindical, financiada por dinheiro público, e que tem entre os seus signatários um morto. O Solidariedade e o PROS abriram barraquinhas no Congresso para cooptar políticos muito vivos. Funcionou. Deputados e senadores já se mudam para as novas legendas, os minutos de televisão já estão em leilão, a verba pública está garantida e o grande espetáculo do troca-troca de políticos entre os partidos é de novo encenado.
Esse teatro da política brasileira tem sempre inesperados. A presidente da CNA, senadora Katia Abreu, ocupou oficialmente terras governistas saindo do PSD para o PMDB. Isso já era esperado por sua identificação cada vez maior com o ideário ambiental do governo. Mas o estranho é que, ao mesmo tempo, o PT está reivindicando, como seu, parte do espólio ambiental que Marina teria perdido sem a Rede. O governo Dilma não tem entre suas marcas a defesa do meio ambiente. Hidrelétricas agressivas à floresta são construídas manu militari e com dinheiro público, reduções de áreas de proteção são aprovadas, a base parlamentar luta por leis que ameaçam as bases da conservação. E por isso lhe cai tão bem o apoio, agora assumido, da senadora Kátia Abreu. É normal que fiquem na mesma coalizão, têm bastante afinidade em pensamentos e atitudes, mas que o governo não tente balançar bandeira que abandonou.
A encrenca que ficou mais aguda é a dificuldade da representação política brasileira. Nesse novo tempo, tão bem descrito nos livros de Manuel Castells, em que os seres políticos atuam em conexão por indignação ou esperança, os fatos no Brasil mostram a obsolescência do sistema: dezenas de partidos sem significado, cartórios deliberando sobre cidadania, políticos em migração constante entre legendas, exigência de papeladas carimbadas após várias eleições feitas sob a tecnologia da urna eletrônica. As propostas de solução que são apresentadas como “reforma política” agravam alguns defeitos e criam outros. O sistema já é financiado com dinheiro público, essa é a motivação que leva à criação de muita legendas de donataria, nas quais famílias são empregadas. Aumentar o dinheiro público não vai sanar esse defeito. É o oposto. Os votos em lista fechada partidária aumentam o poder dos caciques.
Como deve ser a representação política do século XXI? Esse é o centro do dilema atual de vários países, não apenas do Brasil. Nos Estados Unidos, um grupo minoritário radicaliza a oposição e consegue sequestrar o sistema e fechar as portas do governo, numa chantagem explícita para revogar uma lei que foi aprovada nas duas Casas, sancionada pela Presidência e ratificada pela Suprema Corte.
No Brasil, nas últimas duas semanas foram criados dois partidos sem ideias e foi negada a existência do único grupo que se organizou de forma atualizada, em rede, em torno de um projeto. O fato de haver, em uma das novas legendas, a assinatura reconhecida em cartório de uma pessoa morta muito antes de o partido ser organizado dá um toque de realismo fantástico à crise ao sistema de representação política brasileiro. Morto sim, mas com firma reconhecida.
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