Dois livros importantes, ambos tratando da história recentíssima do país, estão entre os mais lidos nesse início de ano. São eles Década perdida (Record) e Assassinato de reputações, um crime de Estado (Top Books), escritos pelo historiador Marco Antonio Villa e pelo delegado Romeu Tuma Junior, ex-secretário nacional de Justiça no governo Luiz Inácio Lula da Silva.
Duas bordoadas impiedosas no lombo do lulopetismo e seus atores mais representativos, com citações obrigatórias a figuras obscuras sobre quem jamais se ouvira falar, mas que emergiram no período, tais como Freud Godoy, Rogério Buratti, Ralf Barquete, Valdebran Padilha, Gedimar Passos e Jorge Lorenzetti, entre outros esforçados bonifrates. Sobre Lorenzetti se apurou que enquanto não estava correndo atrás de um dossiê ou carregando malas cheias de dinheiro para entregar a alguém, era o churrasqueiro preferido por nove entre dez privilegiados freqüentadores das carneadas oferecidas pelo presidente da República nas residências oficiais de Brasília.
Contudo, nenhum desses alcançou tamanha notoriedade quanto Rosemary Nóvoa de Noronha, a Rose, chefe do escritório da presidência em São Paulo, localizado na avenida Paulista. “Amiga íntima” de Lula (ou que isso venha a ser), como os jornais logo passaram a definir a matrona, Rose foi com muita sede ao pote de modo que sua desenvoltura e sinais externos de enriquecimento começaram a chamar a atenção da Polícia Federal.
Pilhada pela operação Porto Seguro, Rose foi identificada como a figura proeminente do grupo de 18 pessoas que teriam se aproveitado da proximidade com o poder para, segundo Marco Antonio Villa “traficar influência e cometer atos de corrupção e de falsidade ideológica”. O historiador acrescentou com base no que os leitores de jornal já sabiam que “Rose teria exigido vantagens financeiras a empresários, inclusive o pagamento de cirurgia plástica, e teria favorecido um esquema de corrupção plantado dentro do governo”.
O trabalho de Marco Antonio Villa consistiu em resumir ano a ano os principais tópicos dos dois mandatos de Lula e os primeiros dois anos de Dilma Rousseff, classificando o período como mais uma década perdida pelo povo brasileiro na busca por governantes probos e realizadores. Com a eleição de Lula em 2002 e a chegada de um operário ao cargo máximo da República, a maioria da nação imaginava que “a grande dívida social” estivesse sendo paga. Villa mostra uma realidade bem distante dessa expectativa ao descrever as peripécias do enfatuado “operário que tinha somente uma década de trabalho fabril, pois, aos 27 anos de idade, dera adeus, para sempre, à fábrica”, mostrando que os fatos indicaram a transformação do torneiro mecânico num “burocrata sindical”.
Nos 30 anos seguintes (1972-2002), analisa Marco Antonio, entre a diretoria do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo e a eleição presidencial, Lula “usou e abusou do figurino de operário, trabalhador, sofrido”.
O Partido dos Trabalhadores foi criado em 1980, precedido por um longo processo de luta de diversas correntes socialistas ou comunistas, algumas perseguidas ferozmente pelo Estado e colocadas sob interdito a partir de 1945. O historiador lembra que para muitos “a história da esquerda brasileira estaria começando com a fundação do PT” e “o ocorrido antes de 1980 não teria passado de uma pré-história eivada de conciliações com a burguesia e marcada pelo descompromisso em relação ao destino histórico da classe trabalhadora”.
Tudo começara, então, no ABC paulista, e o eleito em 1975 para a presidência do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo, o pernambucano Luiz Inácio da Silva, cuja posse foi prestigiada pelo então governador imposto pela ditadura, Paulo Egydio, em breve seria aclamado como o “maior líder operário da história do Brasil”.
É importante a constatação de Marco Antonio Villa: “A repetição sistemática de que em São Bernardo do Campo fora gestada uma ruptura acabou ganhando foro de verdade científica, indiscutível. Lula tinha de negar e desqualificar a história para surgir como uma espécie de ‘esperado’, o ‘ungido’. Não podia, por si só, realizar esta tarefa. Para isso, contou com o apoio entusiástico dos intelectuais, ironicamente, ele que sempre desdenhou do conhecimento, da leitura e da reflexão. E muitos desses intelectuais que construíram o mito acabariam rompendo com o PT depois de 2003, quando a criatura adquiriu vida própria e se revoltou contra os criadores”.
Villa concluiu que na década do lulopetismo houve a exacerbação do culto à personalidade, a ponto de qualquer crítica virar “crime de lesa-majestade”, sendo que “o desejo de eliminar as vozes discordantes acabaria como política de Estado” e, pior “quem não louvava o presidente era considerado um inimigo”.
Valendo-se da cansativa repetição do mantra da “herança maldita” (recurso usado até hoje) o PT aparelhou o Estado “não só pelos seus 23 mil cargos de nomeação direta”, conforme escreveu o autor, mas programaticamente pela transformação de “empresas e bancos estatais, e seus poderosos fundos de pensão, em instrumentos para o PT e toda sua ampla clientela. Estabeleceu uma rede de controle e privilégios nunca vista na nossa história. Em um país invertebrado, o partido desmantelou o que havia de organizado através da cooptação estatal. Foram distribuídos milhões de reais para sindicatos, associações, ONGs, intelectuais, jornalistas chapa-branca, criando assim uma rede de proteção aos desmandos do governo”.
Para melhor definir o caráter dos formadores dessa extensa rede, o historiador fez uma analogia com o que de mais nefando e vil se praticou sob um regime discricionário: “São os tonton-macoute do lulopetismo, os que estão sempre prontos para a ação”. Tonton-macoute eram os agentes da polícia política de François Duvalier, Papá Doc, sanguinário ditador do Haiti na metade do século passado. Num de seus raros momentos de lucidez, quando serviçais extrapolavam em suas atribuições (e não foram poucas vezes), Lula a eles se referiu como “aloprados”.
O outro livro citado, escrito pelo delegado Romeu Tuma Junior, filho do também delegado e depois senador, Romeu Tuma, que o autor reputa como uma defesa pessoal das acusações de associação com um contrabandista chinês e que levaram a seu afastamento do cargo de secretário nacional de Justiça, argumenta que a Polícia Federal também é instrumentalizada para fins políticos. Entrevistado na última edição do Roda Viva da TV Cultura, programa retransmitido pela E-Paraná no final da noite das segundas-feiras, o delegado fez uma afirmação cuja gravidade obriga a sociedade a exigir explicações cabíveis e providências enérgicas para corrigir um curso que desborda de seu leito natural: “Estamos vivendo um estado policial e esse não pode continuar”.
Para se ter ideia do que isso significa basta lembrar as atrocidades cometidas pelas primeiras organizações que gestaram o ogro do nazismo na Alemanha, as ditaduras de Franco (Espanha) e Salazar (Portugal), o já lembrado Papá Doc e o famigerado Bashar Assad, que está transformando a Síria num campo de sangue.
Aqui, a matriz dessa prática abominável usa métodos mais sofisticados assim definidos pelo delegado: “O grande perigo do estado policial é ter um Estado em que o órgão repressor tem o poder de perícia judiciária. Eles conseguem te violentar judicialmente com elementos que forjam tecnicamente. Eles forjam a prova e te colocam na cadeia. Eu era filho de senador da base governista e secretário nacional de Justiça. Imagina o filho de um Zé Mané”, afirmou. Ainda é esse o método mais eficaz para assassinar reputações.
Ferindo princípios do Estado Democrático de Direito, um regime policialesco e, só por isso a denúncia de Tuma é de extrema seriedade, nega até aos advogados constituídos o acesso ao que está rotulado sob “área secreta”. Tuma declarou: “Você chega lá e não pode entrar onde estão os documentos porque diz que é área de inteligência. Isso é muito grave. Não diga que eu não avisei”.
Na época da ditadura militar foi espetacular a ação de pequeno grupo de militantes de direitos humanos, sob direção do cardeal Arns, que durante meses conseguiu burlar a pretensa segurança do estado policial e copiar documentos secretos, mais tarde transformados no livro Brasil nunca mais, com relatos de perseguições, torturas e morte de adversários políticos. Segundo Tuma, esse triste exemplo estaria se repetindo sob a passividade dos sagrados emblemas da República. Até quando?
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