quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

‘Desvios no Bolsa Família’, editorial do Estadão

Augusto Nunes


Publicado no Estadão
Uma auditoria da Controladoria-Geral da União (CGU) mostrou que os desvios e o mau uso de recursos públicos destinados ao pagamento do Bolsa Família e a outros programas federais no interior do país são uma prática generalizada e persistente. Graças às informações contundentes recolhidas pelos auditores, desfaz-se o mito segundo o qual essas irregularidades seriam apenas pontuais.
A investigação da CGU foi realizada no âmbito do Programa de Fiscalização por Sorteios Públicos, que seleciona aleatoriamente 60 municípios cujas contas serão examinadas. São cidades com até 500 mil habitantes, excetuando-se capitais. Conforme está expresso em seus princípios, o objetivo do programa, criado em 2003, é “inibir a corrupção” dos gestores públicos.
Na mais recente verificação, são comuns os casos de fraudes em licitações para a construção de creches e de Unidades Básicas de Saúde (UBS). Além disso, há diversos exemplos de obras paradas ou nem sequer iniciadas, apesar dos recursos terem sido repassados aos municípios.
Mas é no Bolsa Família que o descontrole do dinheiro público é mais evidente. Dos 60 municípios sorteados na última fiscalização, nada menos que 59 apresentaram irregularidades na administração do dinheiro destinado à transferência de renda. Tal proporção indica que se está diante de uma situação comum e recorrente ─ na verificação anterior, constataram-se irregularidades em 58 das 60 cidades.
Os problemas resultam basicamente do desvio de dinheiro por parte das prefeituras, que são responsáveis pela aplicação dos recursos e que devem prestar contas ao governo federal. A auditoria mostra que esses problemas são múltiplos, relacionados principalmente à corrupção e ao grave despreparo técnico por parte dos municípios.
Há casos escandalosos. Em Cipó, interior da Bahia, a CGU constatou que diversos servidores municipais com renda superior ao teto do Bolsa Família recebiam o benefício. Além deles, a própria filha do prefeito ganhava R$ 102 mensais do programa federal.
Em Boca da Mata (AL), funcionários públicos também recebem o benefício, assim como a integrante de uma família de comerciantes. Em Abaiara (CE), os beneficiários incluem o sócio de um posto de gasolina ─ que, conforme a auditoria ressalta, é fornecedor da prefeitura, num contrato que lhe deu entre R$ 240 mil e R$ 433 mil por ano desde 2009.
Há diversos casos de beneficiários do Bolsa Família que não poderiam receber o dinheiro porque são também aposentados ou pensionistas. Em Maracás (BA), constatou-se o pagamento a 54 famílias que apresentaram essa irregularidade.
Multiplicam-se também exemplos de violação da norma segundo a qual a família só recebe o Bolsa Família se mantém suas crianças na escola, como nos municípios de Ferreira Gomes (AP) e Itarantim (BA). A auditoria constatou ainda que é comum a falta de implantação de programas complementares ao Bolsa Família, necessários para a manutenção do benefício, e também de verificação frequente do cadastro dos beneficiários. As prefeituras falham ainda na divulgação dos nomes de quem recebe os pagamentos ─ um procedimento obrigatório justamente para facilitar a fiscalização ─ e no arquivamento de documentos, que ficam muitas vezes empilhados sem nenhum critério em salas improvisadas.
Confrontadas com as irregularidades apontadas, muitas prefeituras disseram já ter bloqueado os pagamentos, mas, segundo a CGU, raros são os casos em que os gestores apresentaram documentos para comprovar o que dizem.
Apesar desse cenário preocupante, as autoridades federais insistem em dizer que, em se tratando de um programa complexo como o Bolsa Família, tais irregularidades são insignificantes. Para contestar as denúncias de desvios no Bolsa Família, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva já chegou a dizer que esse noticiário é fruto de “preconceito” das “elites”. Mas não será minimizando os desvios nem soltando bravatas sobre luta de classes que o mau uso do dinheiro público será combatido como se deve

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